Sunday, June 3, 2007

Pedro e o Lobo


Sou professora de música, entre outras atividades que exerço.
Adoro ensinar música para, principalmente, crianças pequenas, que ainda estão abertas para novos sons, não totalmente seduzidas pela arte comercial. Meus alunos escutam Mozart, Bach, Björk, música grega, cantigas de roda e mantras, por exemplo.
Além das aulas particulares e das que dou em escolas, uma vez por mês, participo com um grupo de voluntários de uma "maratona" de oficinas para colégios públicos, os mais carentes. São profissionais de várias áreas que disponibilizam seu tempo e conhecimento para, durante um dia, movimentar a rotina de uma instituição de ensino.
Minha oficina, é claro, é a de música.
Em maio passado, estivemos num dos morros localizados na periferia da cidade. Uma escola bem organizada e limpa: foi o que primeiro me chamou a atenção. Depois, quando conheci os professores e a direção, vi que o quadro de funcionários era composto por gente que amava o que fazia. Os alunos, resistentes ao aprendizado, mas não vou aqui questionar o porquê desse quadro, não é o foco do meu relato.
Quando iniciei a oficina, onde ensino a montar uma "marimba d'água", os maiores foram caindo fora, dizendo "isso é coisa de criança..." Os que ficaram, quiseram participar, construir os instrumentos de percussão, cantar, dançar, mas tudo dentro do contexto deles, isto é, muito funk, rap, letras que eles não compreendiam a metade mas sabiam de cor.
Deixei a eles o exercício livre da sua cultura musical, pelo menos na primeira hora.
Então, chegou o momento da troca.
"Agora, vou mostrar a vocês a música que eu gosto. Espero que vocês ouçam e apreciem da mesma maneira que me portei com relação à música que me mostraram".
Toquei um CD de Pedro e o Lobo, de Sergei Prokofiev, a maravilhosa aventura contada pelos instrumentos. Cada personagem é representado por um tema, tocado por algum instrumento da orquestra: Pedrinho, pelas cordas; Fred, o passarinho, pela flauta transversal; Nestor, o pato, pelo oboé; Misha, o gato, pelo clarinete; o avô, pelo fagote; o lobo, pelas trompas e os caçadores, pelos tímpanos. A narradora vai conduzindo o fio da história e a orquestra apresentando o movimento dos personagens.
A maioria dos instrumentos era desconhecida para eles. Ficaram curiosos, aproximando-se do aparelho de som, puxando as cadeiras, sentando no chão, procurando identificar cada sonoridade. O atrativo maior era saber pelo som do instrumento qual o personagem que se manifestava no enredo: um jogo novo, totalmente coordenado pelos ouvidos e pela atenção.
Um dos garotos que mais perturbara o andamento da aula há pouco, aproximou-se e sentou no meu colo.
Ia dizendo o nome dos personagens no meu ouvido, à medida que surgiam e antes de serem identificados pela narradora, acertando todos! Ele conseguira decorar o nome de todos os instrumentos e associá-los corretamente a cada personagem. Isso é bastante raro de acontecer, demonstrando além de ótima memória, uma enorme musicalidade, numa criança de 6 ou 7 anos, bagunceira, mal-educada e agressiva, sendo totalmente dominada e fascinada pela obra de um russo, do qual ele nem suspeitava a existência!
Isso me deixou feliz, emocionada e satisfeita com a vida, o mundo e todos os seus problemas...
Ficamos sentados juntos até o final da história e quando acabou, ele disse, orgulhoso: "acertei tudo, hein, tia?"
E saiu correndo, porta afora.